segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Sobre o caráter sexual do Paraíso (Parte II)


O Paraíso é um signo: um espaço circular onde se dão condições especiais. Prazer, abundância, eternidade, potência, serenidade e conexão. Imediaticidade do objeto do desejo, ausência de dor. Todos temos ao alcance das mãos húris e frutas desejadas. Eternidade do gozo e do relacionamento. O gozo é eterno quando promove a união, quando lhe é subtraída toda condição temporal, quando não é limitado, mas pleno, direto ao centro no qual a serenidade repousa. Proximidade do prazer e do divino. Prazer sereno e abundante, potência recursiva capaz de fazer-se eterna...

Fazer amor é um feitiço, ainda mais se esse feitiço de produz em um círculo de feitiços. O temporal se imanta de seu fragmento eterno, somos apenas corpo. Corpo espiritual e desejoso, com a ruptura dos estereótipos: o espiritual é carnal, encarnado-se em uma imago que transpõe os mundos e destrói as distâncias. Nas narrativas sobre o Paraíso nos fazemos capazes de incendiar e aflorar a potência, capazes de regar o ventre das húris.

O ato sexual interrompe o fluído temporal como um fogareiro luminoso, sendo a morte do Eu que nos limita. É um imã do paraíso: não viemos do passado, fluímos por toda a eternidade. O futuro não é temido, mas desejado: aquilo que é próprio de todo desenvolvimento. O ato sexual é um rito: convocatória de um futuro que se situa à margem do fluído temporal como culminação de todos os processos. É o eros da proximidade, o horizonte clamado. Penetrar o sexo da húri é habitar a aurora, esse espaço entre o céu e a terra em cada amanhecer.

Eros pertence ao cosmos primogênito: é anterior a nós mesmos. É a energia criadora, essencialmente benigna, carregada de baraka [bençãos]. Os eventos eróticos que ocorrem no Paraíso são a celebração dessa energia. A energia sexual é fluída: nada a controla. A descrição corânica do Paraíso tem a capacidade de despertar essa energia. A recitação desses versículos provoca uma catarse, por isso se dizem em voz baixa. A recitação possui força: fazemos descer por nossas gargantas aqueles signos pelos quais a Criação se realiza. Nosso presente se desestabiliza, perde seus contornos. Perante a imagem fluída da húri se assustam os clérigos e orientalistas [bem como os islamófobos...]. Estes tratam de explicá-la, de racionalizá-la e buscar um sentido alegórico em todos esses signos. Mas não nos confundamos: o Paraíso de Allah se apresenta de um modo abertamente erótico.

Não se trata de se faremos ou não amor no Céu, entre as nuvens, nem de crer ou não na literalidade dessas descrições. Se trata de que alguns signos escolhidos por Allah para representar a felicidade suprema nos remetem [também] à sexualidade humana. Isso é algo que numerosos comentaristas da tradição profética tem notado, com maior ou menos consciência de suas conotações, com maior ou menor complacência. Tudo isso não significa que nós, muçulmanos, sejamos obsessivos sexualmente, mas bem remetem à alta estima na qual Allah situa o prazer sexual e o cumprimento do desejo. Quem não se dá conta disso permanecerá cego, alijado do Paraíso.

[extraído de Seyyed az-Zahirí, Sobre el carácter sexual del Paraíso, In.: Palabras para resucitar al-Andalus: textos essenciales del pensamiento islámico actual, p.79, disponível em http://www.vicentehaya.com/resources/TEXTOS-ESENCIALES-DEL-PENSAMENTO-ISLAMICO-ANDALUSI.pdf - tradução de Muhammad F.]

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