Que a paz, as bençãos e misericórdia de Deus estejam convosco.
Hoje, peço licença para expor um pouco de minha imensa ignorância e escrever
algumas considerações sobre um ato admirável, exemplar, que tenho como ação de
excelência: a tradução.
O ofício de traduzir deve ser
ancestral como o próprio homem. Quando sujeitos de culturas diferentes se
encontram e são mediadas, de algum modo, por um sujeito falante de ambas as
línguas, temos o ato de tradução ocorrendo. A nobreza e o valor desse sujeito,
procurando manter-se fidedigno ao conteúdo de uma mensagem, a preocupação de
como tal mensagem será compreendida pelo interlocutor, fornecem parte da vertigem
do ato de traduzir. É difícil e é arriscado, é como Umberto Eco afirma, em Quase a mesma coisa, uma negociação que
se faz com o texto e entre os consumidores desse texto, afinal.
Negociar sentidos atribuídos aos
objetos da linguagem. Lidar com homens e ideias. Lidar com a compreensão e
atribuição de valor. Após o advento
de uma cultura escrita massificada – podemos dizer que o livro é, talvez, um
dos primeiros objetos industrializados (cf. Chartier em A aventura do livro) -, o ato de traduzir modificou-se: dessa vez,
a tradução materializava-se em papel e tinta. Assim, não se traduzia qualquer
coisa, mas uma cultura de tradução difundia-se. Na verdade, antes da imprensa
havia essa difusão de uma cultura de tradução, com línguas sendo priorizadas
como línguas de tradução (durante algum tempo e localmente na Europa, o latim;
mais amplamente por um tempo maior que o latim, o árabe; mais recentemente o
inglês). Temos então línguas de acesso,
como o alemão, o persa, o russo, e línguas
de tradução, como o francês, espanhol e árabe. Diferencio uma da outra por
conta de que algumas línguas parecem servir melhor para que uma tradução seja
difundida do que outras, sendo isso uma questão mais cultural do que técnica,
enfim.
Esse é o caso contemporâneo do
inglês: se a obra não foi escrita nessa língua, provavelmente será traduzida
para ela. É o caso, por exemplo, da seerat
de Ibn Ishaq, The life of Muhammad: a
primeira tradução para uma língua ocidental foi para o inglês; praticamente, só
temos acesso a esse livro nessa língua (me corrijam se estiver errado, por
favor). É o caso das traduções que faço nesse site: meu conhecimento de árabe é
pífio para que possa arriscar uma tradução direta. Arrisco, assim, a traduzir
os textos que foram traduzidos – realizando as assim chamadas traduções de
segunda mão.
Gostaria, nesse momento, de
retomar algo que falei no começo do texto: que a tradução é um ato de
excelência. Permitir que membros de culturas diversas entrem em contato,
favorecer tal contato, parece ser um dever, uma obrigação das pessoas que
procuram algum esclarecimento sobre o mundo. Abandonar um tanto do centrismo que somos envolvidos em nossos
pensamentos parece ser um atributo do tradutor (ou que deveria ser),
relativizando a possibilidade de acesso à Realidade como algo possível por
parte de todos... As línguas formam identidades e nações (penso em Benedict
Anderson e seu Comunidades imaginadas),
mas possibilita também o contato entre estas. Enfim, gostaria de terminar essas
digressões, que espero continuar caso fique satisfeito com meu texto, com uma
citação do Alcorão Sagrado:
Ó humanos, em verdade, Nós vos criamos de macho e fêmea e vos dividimos
em povos e tribos, para reconhecerdes uns aos outros. Sabei que o mais honrado,
dentre vós, ante Deus, é o mais temente. Sabei que Deus é Sapientíssimo e está
bem inteirado. (Alcorão, 49:13; extraído de http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/alcorao.pdf
- tradução do professor Samir El Hayek)
É ordem de Deus conhecermos uns
aos outros; assim, encerro por aqui esse texto indicando que existe, através da
sabedoria tradicional, excelente indicativo para que façamos esse ato de
conhecimento mútuo. Que a Paz esteja conosco.
[Em breve, e se Deus permitir, tratarei sobre a questão da "tradução" do Alcorão.]
[Em breve, e se Deus permitir, tratarei sobre a questão da "tradução" do Alcorão.]
Bibliografia:
ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre
a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
BURKE, Peter e HSIA, R. Po-chia
(orgs.). A tradução cultural nos
primórdios da Europa Moderna. São Paulo: Editora UNESP, 2009.
CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador; conversações com Jean Lebrun. São Paulo:
UNESP/IMESP, 1999.
ECO, Umberto. Quase a
mesma coisa: experiências de tradução. São Paulo: Record, 2007.
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