sexta-feira, 3 de maio de 2013

Em defesa do xiismo


Que a paz, as benção e a misericórdia de Deus estejam convosco e conosco, do passado até o Dia do Juízo Final.

Meus caros, o presente post de certo modo é um desabafo de algo que me irrita muito: o uso indiscriminado do termo xiita para acusar todo pensamento intolerante ou fanático. Algumas reflexões muito sérias ainda estão por ser feitas; o que proponho é tão somente acrescentar um grão de areia a uma praia, mas espero que possa, através dessa minúscula e pretensiosa exposição, clarear algumas questões...

Após a Revolução Iraniana de 1979, o movimento xiita tomou maior dimensão em nosso Ocidente. As leituras que a mídia realizou foram no sentido de indicar a existência de um movimento, mas ao mesmo tempo confundir suas manifestações sob o governo iraniano como manifestações do xiismo em si. Ora, um sistema de pensamento é uma coisa muito distinta da generalidade dos seus frutos.

Através de uma séria de problemáticas às quais o povo iraniano vivia subjugado - como as influências cultural e político-militar de outras nações -, o xiismo pôde auxiliar no desenvolvimento de um sentimento de nação, território e cultura que até então pouco existiam. O povo, juntamente com o líder da revolução, o Ayatollah Ruhollah Khomeini, demandaram uma retomada de valores religiosos. Obviamente, a leitura do Alcorão e dos Hadiths (sejam do Último Profeta, que a paz esteja com ele, ou dos Imams, que Deus esteja satisfeito com eles) receberam a forte influência do contexto no qual o Irã se encontrava.

A propaganda contra um modo de vida Ocidental, a retomada dos valores tradicionais em detrimento dos frutos da modernidade, a ação militar, a crítica às instituições, foram todos fatores que passaram a ter maior importância. Parece ser uma das lições da História a de que quando um povo quer se fortalecer, seja pela ação de suas elites ou de seus grupos populares, encontra um inimigo externo.

Desse modo, o xiismo passou a ser associado a uma série de comportamentos irracionais, totalitários mesmo, que arriscaram levar ao desconhecimento de sua verdadeira natureza por parte dos Ocidentais, sendo que trata-se, contemporaneamente mais do que nunca, de uma tentativa de reação a esse "inimigo externo".

A algumas décadas antes do presente contexto iraniano, com um "nuclearista" como Mahmoud Ahmadinejad, um francês chamado Henry Corbin pôde estudar e esclarecer muitos pontos do que é o xiismo, a que se propõe e sua contribuição essencial ao pensamento universal. Henry Corbin detalha todo um sistema místico-filosófico de extrema densidade e com uma tradição intelectual de causar inveja aos nossos filósofos Ocidentais. Em seu Histoire de la philosophie islamique, o autor nos mostra algo que, quando li primeiramente, me deixou extremamente surpreso: se temos no islamismo uma tradição filosófica e reflexiva, devemos aos xiitas tal tradição. O que os grupos sunitas pareciam se esforçar em fazer, ao menos durante séculos, era estabelecer o domínio político, organizar um Estado islâmico (apesar de ter minha ressalvas quanto a essa expressão) e legislar sobre os diferentes aspectos da vida prática - daí as inúmeras  proclamações muitas vezes anedóticas e que se propagam ainda hoje. Já os grupos xiistas, isolados de algum modo das disputas terrenas, entregavam-se à reflexão e ao aprofundamento da experiência religiosa. Alguns anos mais tarde, o envolvimento com questões "terrenas" seria inevitável para a crescente comunidade xiita - para maiores informações, consultar o livro basilar de Albert Hourani, Uma história dos povos árabes. Entretanto, não é esse aspecto que gostaria de destacar.

De todo modo, como escapa à consciência média das pessoas, estudiosos ou não, o xiismo tem muito pouco de fanatismo irrefletido em sua origem e desenvolvimento do que o acusam. Não sou xiita, mas também não olho para o pensamento xiita de modo a tomá-lo como inferior, de segunda categoria ou pertencente a um grupo mal instruído de indivíduos iludidos e bárbaros. Muito pelo contrário: se tomarmos o xiismo e, fantasiando, tentarmos colocá-lo num bloco monolítico, termos um sólido sistema intelectual com algumas arestas. O barbarismo do qual o acusam não é resultado meramente do xiismo, mas também uma série de condicionamentos e determinações materiais e históricas em relação.

... enfim, tudo isso para dizer que, quando alguém acusa tal pessoa por ser xiita (por exemplo, um "fã xiita" ou um "torcedor xiita"), associam, primeiramente, tal adjetivo, xiita, ao radicalismo e ao fanatismo. Dou graças a Deus de possuir entendimento mínimo para quando me chamam ou chamam alguém de xiita compreender que pode se tratar de um elogio. Sugiro que tal reflexão seja feita, principalmente pelas pessoas que lidam com a comunicação em nosso Ocidente, ou por aqueles que querem ser reconhecidos como pensadores ou filósofos (seja pelo diploma e/ ou pela experiência). Chamar alguém de xiita e querer dizer que isso é um pensamento atrasado ou algo depreciativo indica o quanto o acusador não possui de esclarecimento do que se trata o próprio xiismo.

Sugiro para todos que quiserem ter maior conhecimento do que é o xiismo que procurem uma autoridade no assunto e que leiam um livro extremamente acessível (uma vez que encontra-se na íntegra na internet) antes de continuarem usando tal adjetivo como um pretenso xingamento ou ofensa: trata-se da obra de Mohammad Hussein al-Tabatabaí, O Xiismo no Islam, disponível em http://www.arresala.org.br/arquivos/File/pdf-livros/OXiismonoIslam.pdf.

Definitivamente, é uma pena que nossos meios de comunicação continuem demonizando um sistema de pensamento tão complexo. Não me parece muito diferente dos bárbaros que acusam os outros de serem; quando afirmam que o Ocidente é um antro de hedonismo, erotismo, falta de valores e de moral, exageram do mesmo modo. Não cometamos os mesmos erros daqueles que pretendemos julgar, irmãos, tampouco julguemos de maneira definitiva, pois não nos cabe isso... Procuremos no xiismo um potencial exemplo para a condução da vida humana com dignidade. Procurar aspectos negativos e encontrá-los é possível em toda experiência humana, afinal...

[Não tratei de passagem da questão da iconografia xiita e de suas relações com a iconografia cristã, tampouco descrevi seus rituais ou critiquei essa ou aquela prática; peço a compreensão dos leitores e a graça de Allah para que um dia possa escrever sobre esses assuntos tão complexos.]

Bibliografia:
AL-TABATABAÍ, Allamah Ayyatullah al-Odhmah Assayed Mohammad Hussein. O xiismo no islam. São Paulo: Edições Arresala, 2008.

ARMSTRONG, Karen. Em nome de Deus: o fundamentalismo no judaísmo, no cristianismo e no islamismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

CORBIN, Henry. Histoire de la philosophie islamique. Paris: Gallimard, 2006.`

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